Os Frutos da Árvore #7 - Especial de 1 Ano - Pará
Vem tomar um tacacá, dançar, curtir e ficar de boa
Égua! A nossa sétima edição traz textos com a temática desse estado brasileiro tão querido por nós: o Pará! Aproveite o verão amazônico, a época de boi e navegue pelos textos que selecionamos. Para esta edição, falaremos de diversos aspectos da rica cultura paraense - desde o lado caribenho da sua música até o movimento arquitetônico Raio-que-o-parta. E claro, como sempre, preparamos uma playlist mais que especial para essa edição. Tome seu tacacá, curta, dance e fique de boa, porque nesta edição o tempo vai voar!
Aproveite!
A influência da música caribenha na música paraense
Por Gui Lanzoti
“Através das rádios - lá era muito comum você pegar de tarde, ligar uma rádio e procurar uma música boa. Que música boa era essa? Tinha muito. Era rumba, era merengue, cha cha cha, bolero.”
Esse trecho acima do documentário Ventos que Sopram: Pará (2021) é um registro audiovisual da história sendo contada por quem a viveu. Por questões geográficas - sua localidade no extremo norte do país - o Pará se tornou a fronteira artística e cultural com a América Central e o Caribe, por meio dos discos que chegavam e, especialmente, dos sinais de rádio AM que, mesmo chegando fracos e com interferências, eram o suficiente para passar a percussão marcada e as guitarras ritmadas para o inspirado povo paraense.
As influências caribenhas, que não chegaram com tanta força aos outros estados brasileiros, ajudam a dar o caráter único aos ritmos paraenses, além de provar a fluidez da música, que se transforma quando em contato com diferentes culturas e povos.
É essa fluidez que traça a história de como a música caribenha sutilmente vira música paraense - Ruy Barata, grande nome da cultura paraense, descreveu que “o Pará acabou assimilando o merengue, que foi nacionalizado, entre nós, com o gostoso nome de Lambada”. Essa lambada, nascida no Pará e que posteriormente conquistou o mainstream brasileiro, retornou ao Caribe e também ao restante do mundo com o sucesso de Kaoma - Lambada, popularmente conhecida como “Chorando Se Foi” (que não é exatamente uma lambada e também não é bem do Kaoma, mas isso é assunto pra outro dia).
É no ato da curiosidade que mora a beleza — um povo disposto a ouvir atentamente o rádio para entender a cultura de seus vizinhos, assimilá-la à sua própria e devolvê-la em outro formato, em outro idioma, criando assim um ciclo. É argumentável que isso ocorre, em parte, pelas grandes semelhanças entre a cultura do Norte brasileiro e a cultura caribenha, como defendia Gabriel García Márquez, que acreditava que parte do Brasil também fazia parte do Caribe:
“O Caribe, que, em rigor, se estende desde o norte até o Sul dos Estados Unidos e pelo sul até o Brasil. Não pense que é um delírio expansionista. Não: é que o Caribe não é somente uma área geográfica, como creem os geógrafos, e sim uma área cultural muito homogênea.”
— GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ. Notas de prensa (1961–1964). Barcelona: Mondadori, 1999.
“Gabriel García Márquez, que foi um dos que me convidaram quando fui pra Cuba pela segunda vez participar do Festival Califiesta, defende a teoria de que o Brasil, da Bahia para cima, faz parte do Caribe.”
— CHICO BUARQUE, entrevista à revista Bizz, abril de 1988.
Não é por acaso que um dos sucessos mainstream principais da música paraense seja o grupo Calypso, nome de um dos mais tradicionais ritmos caribenhos.
Eu, um paulista, me lembro que, quando visitei o Pará, o que mais me chamou a atenção foi a paixão dos paraenses ao falar da sua cultura. Não há desinteresse ou estima exagerada pelo que vem “do eixo”, pelo contrário, mesmo quem não está inserido nas artes sabe explicar muito bem quais são os movimentos, de onde eles vêm. E é essa paixão que torna tudo melhor e mais vibrante.
Vá para o raio que o parta
Por Paulo
Uma das coisas que eu acho mais fascinantes no Brasil é ver a diversidade gerando diversidade. Por sermos compostos por uma pluralidade enorme e riquíssima em nosso país - talvez um dos nossos maiores tesouros intangíveis - existe uma variedade muito ampla de algo que tem uma raíz comum. Isso pode ser visto nos âmbitos mais fundamentais, como a língua, por exemplo, onde há vários tipos de sotaques, como também nos mais supérfluos, como as diferenças entre o funk carioca para o funk de São Paulo, para o catarinense, capixaba, de BH…
Dando ao Modernismo toda a importância que se deve, considerando as influências que o movimento gerou e que afloraram pelo Brasil impactando a estética nacional, no Pará, surgiu uma expressão do modernismo interessantíssima. Na arquitetura paraense, o movimento Raio-que-o-parta trouxe singularidade para diferentes estabelecimentos que até hoje chamam a atenção por serem tão originais.
Se você acompanha os nossos textos por aqui e se lembra sobre o texto da edição de verão sobre o piso de caquinhos, saiba que a história é mais ou menos semelhante. Durante as décadas de 1940 a 1960, o movimento Raio-que-o-parta tomou corpo por ser uma alternativa para aqueles que não tinham dinheiro o suficiente para contratar arquitetos que construiriam projetos modernistas. Mesmo assim, essas pessoas queriam incluir os símbolos e características do modernismo, como por exemplo os tão famosos murais de azulejos. Assim, fizeram à sua maneira.
A arquiteta e professora Cybelle Miranda estuda o movimento há mais de uma década. De acordo com ela, o Raio-que-o-parta nasceu na engenharia. “Engenheiros faziam o papel de arquitetos e criavam projetos com azulejos mais baratos, quebrados na travessia da Rodovia Belém-Brasília, e o estilo se popularizou”. Como as condições da estrada eram precárias na época, muitos azulejos se quebravam durante a viagem até Belém. Assim, os cacos eram vendidos por um preço mais baixo, proporcionando que famílias com menos poder aquisitivo conseguissem decorar suas casas de uma forma mais moderna.
Cybelle Miranda diz que dá para diferenciar as casas feitas por engenheiros das casas construídas por mestres de obra, por causa dos materiais e estilo do projeto. A maior característica do movimento são os cacos de azulejos coloridos nas fachadas das casas, comumente nas platibandas das casas, que compõem formatos de raios e formas geométricas. Muitos desses murais foram criados pelo artista Ruy Meira e por seu sobrinho, o arquiteto Alcyr Meira.
Mas vai muito mais além das fachadas com lajotas cerâmicas. Para além da arquitetura, o paisagismo dessas casas também é original porque fazia uso de plantas locais. Outro fator interessante é a presença de ícones e símbolos religiosos nessas casas. Como muitos mestres de raio eram negros e indígenas e eram eles mesmos que reformavam suas próprias casas, que muitas vezes funcionavam como terreiros, esses símbolos aparecerm nessas residências.
E o nome? Não se sabe ao certo, mas dizem que esse nome se consolidou porque uma vez um arquiteto do Rio de Janeiro chamado Donato Mello Júnior, ao chegar na Universidade Federal do Pará, criticou aquela arquitetura. Segundo ele, aquilo era uma “arquitetura de mau-gosto, do raio-que-o-parta”. Mas em vez do termo ganhar uma conotação negativa, foi visto como algo engraçado e divertido e assim se difundiu.
Infelizmente, atualmente, o estilo tem sofrido com apagamentos. Pintam ou retiram os azulejos e até mesmo reformam as casas mudando completamente a fachada. Mas foi diante disso que em 2020 as arquitetas Elis Almeida, Elisa Malcher e Gabrielle Arnour se mobilizaram e começaram um projeto de valorização desse movimento. A Rede Raio Que O Parta traz um mapeamento e catalogação dos locais com essa arquitetura em Belém. Esse movimento é fundamental para reconhecer e preservar a identidade desse movimento tão único e inovador característico do Pará.
Fica a nossa sugestão para você acompanhar a Rede Raio Que O Parta e conhecer mais sobre o movimento.
Que língua vocês falam no Brasil?
Por F. Ormika
Certo. Certo.
- Que língua vocês falam no Brasil?, te perguntou uma vez um amigo gringo. Antes que você pudesse responder, provavelmente ele emendou a pergunta, querendo sinalizar que ele tem, sim, algum tipo de conhecimento sobre nosso continente: - Espanhol?
E você deve ter respondido, já talvez revirando os olhos: - Não. Português.
Com a cara de espanto nos olhos do camarada, que já amargamente se arrependeu do hola, amigo com que começou a conversa e percebeu que ele não deve ter nenhuma palavra em português para te saudar – a não ser que se trate de um forasteiro do tipo mais desinibido, que talvez te dê o prazer de ouvir samba!, Neymar! e du Braziiiu! – você começa a pensar. Com isso, vêm algumas ideias, velhas conhecidas, antigas frequentadoras do departamento da nossa alma dedicado ao orgulho nacional: – Nossa, esses gringos são burros mesmo.
E fazemos cosquinhas no nosso ego com essa ideia; o orgulho latino-americano faísca um pouco. É talvez um dos únicos momentos (posto de lado o futebol, que, aliás, está complicado ultimamente), em que conseguimos sentir uma certa dignidade geopolítica – como são burros os gringos! Não sabem nada sobre a gente e sabemos tudo deles!
Aí você pensa mais um pouco, e pode começar a não bater muito bem o orgulho latino com o orgulho em falar uma língua que carrega o nome de outro país que – detalhe importante – nos colonizou.
Hm… você hesita. Então nós falamos português brasileiro! Certo, não é a mesma coisa, mas ainda fica patente quem é que dá o nome à língua.
Será, por fim, que não seria legal dizer que falamos “brasileiro” então? Pode ser, mas isso ainda não foi posto como demanda; antes temos que resolver a questão do TikTok sobre passar ou não a chamar Portugal de Pernambuco em Pé.
Certo… e será que, pra sermos verdadeiramente descritivos e fingirmos que Portugal não passou pelo meio do caminho, podemos dizer que falamos Latim Brasileiro Moderno? Arre, esquisito. E costuma ser preocupante sempre que alguém começa a querer conectar seu país moderno com o Império Romano…
Ok… português então. Depois desse rápido rodeio mental pelas profundezas do seu senso de nacionalidade, você, já com menos segurança de si, diz ao gringo: No Brasil falamos português brasileiro, na verdade; não é a mesma coisa. Em Portugal eles falam muito rápido e chamam meninos de ‘putos’. É a mesma língua, mas é diferente. E o gringo diz “oh, interesting”, talvez percebendo que o assunto te bagunçou um pouco. Ele sugere outro caminho pra conversa, não querendo te constranger, e a vida segue.
Mas você vai ficar mais tempo pensando nisso, e começam a brotar outras perguntas na sua mente. Calma, se isso não for português… como definir que qualquer coisa é português? Um gaúcho, um amazonense e um mineiro falam a mesma língua? É óbvio que sim, porque eles se entendem, mas nós também entendemos os portugueses, então todos falamos a mesma língua? Ok, pode ser, mas talvez eu não queira usar o nome “português”. Vai ser “brasileiro”. Você se convence de que o melhor caminho é chamar a língua de “brasileiro”. Mas voltam os problemas: os angolanos falam, também, brasileiro, então? Óbvio que não! Nem os portugueses! Mas todos nos entendemos…
Agora, definitivamente, você percebeu que é impossível dar um nome certo a uma língua. Cada povo ou país vai fazer o que bem entender e o mundo continua. O gringo não é mais burro, e a sua resposta está reabilitada; ela foi, de fato, razoável e informativa.
Então você, um dia, diz com toda a naturalidade do mundo, sem engasgar em nenhuminha sílaba, a palavra “Pindamonhangaba”; e o mundo desaba de novo. Você se impressiona, porque sabe que essa é uma palavra dificílima, e pensa que um português talvez sofresse pra pronunciá-la. Mas você, ó, fala e pronto. Então, se lembra de ter ouvido em alguma fase da vida que o português do Brasil é cheio de palavras da língua tupi, que você nunca entendeu direito o que era, mas você ouviu aquela música Tu tu tu tupi do Cocoricó na infância.
Mas que língua é essa? Quem fala ou falava ela? De novo você começa a duvidar de tudo que sabe sobre a própria língua; a pergunta do gringo deixou de ser descabida, pois você percebeu que também não sabe a resposta e não conhece tão bem assim o próprio país. E vamos, finalmente, ao Pará.
O Pará, o Rio Tapajós e o Nheengatu
Esse não é um relato de um estudioso de línguas indígenas brasileiras, apenas de um curioso. A discussão que segue abaixo tem como fontes, principalmente, o documentário “Entre rios e palavras: as línguas indígenas no Pará em 2021”, produzido pelo GEDAI (Grupo de Estudo Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas), que congrega pesquisadores de diversas universidades; o artigo “O Nheengatu no Rio Tapajós: Revitalização Linguística e Resistência Política”, publicado por Florêncio Almeida Vaz Filho e Sâmela Ramos da Silva no livro A Produção do Conhecimento nas Letras, Linguísticas e Artes 3, organizado por Ivan Vale de Souza (Editora Atena, 2019); e o livro Latim em Pó, especialmente os capítulos “Gerais” e “Morte”, de Caetano W. Galindo (Companhia das Letras, 2022).
Se formos atrás de pesquisar a situação das línguas faladas ao redor do mundo, subitamente fica um pouco mais complicado acreditar que cada país tem sua própria língua, e que é possível colocar uma bandeira na frente de cada uma pra representar ela na lista de cursos do Duolingo. A situação do Brasil, em que você pode encontrar um habitante de qualquer outro estado do país e, sem nem perguntar nada, começar a falar com ele em português e esperar, confiante, que ele deve te entender sem problemas, passa a parecer um absurdo. Como, raios, um país desse tamanho fala uma língua só?
Bom, a resposta curta é que não, o Brasil não fala uma língua só. Temos as línguas indígenas e outras trazidas por imigrantes de todos os cantos do mundo. Mas, é bem verdade, podemos dar uma resposta mais longa à pergunta.
O português, por mais que não esteja sozinho no país, é a única língua a respeito da qual você pode, com razoável certeza, ter a expectativa de que qualquer outro habitante do país conheça. O simples fato de dizermos “no Brasil se fala português” com tanto desembaraço é um fortíssimo indício disso.
De fato, só se chegou a essa situação com um esforço enorme e muito duradouro do Estado português/brasileiro. Nosso país já viu diversas tentativas de extinção de línguas “estrangeiras” – leia-se, qualquer uma que não fosse o português –, e, no caso das línguas indígenas, talvez o movimento mais famoso seja o Diretório dos Índios, de 1755-57, que, entre outras coisas, proibiu que se usassem as “línguas gerais” faladas no país, com o objetivo de promover o português como língua única nacional.
Pelo que consegui entender até agora, as línguas gerais foram línguas francas desenvolvidas de forma mais ou menos orgânica em diversas regiões do país, com base em línguas tupis, e, delas, duas variedades se destacaram: a do norte a do sul. A do Sul (Língua Geral do Sul, Paulista ou da Costa) era baseada no tupiniquim de São Vicente e foi usada em áreas de influência paulista no litoral e centro-oeste; a Língua Geral do Norte (Nheengatu), tinha como base o tupinambá do Pará e foi muito importante na região amazônica. Como qualquer coisa verdadeiramente brasileira, as línguas gerais tiveram sua história profundamente marcada pela colonização, e atingiram seu status de língua franca em grande medida por conta das migrações causadas pelas bandeiras e pela catequização jesuítica. Eram mais faladas que o português e eram aprendidas como primeira ou segunda língua por indígenas, africanos escravizados e portugueses.
Agora, sim, chegamos ao Pará. O Nheengatu se espalhou pela região amazônica conforme a população se direcionava para o interior da bacia do Rio Amazonas para fugir da violência europeia, e foi usado como língua dos missionários jesuítas, o que ajudou em sua padronização e disseminação entre povos que não falavam o tupinambá. Com a expulsão dos jesuítas no século XVII, a língua continuou sua vida de forma mais orgânica, sendo transmitida e vivida pela população local de geração em geração. O grande golpe à Língua Geral do Norte deve ter sido a Revolta da Cabanagem, quando a população da província do Grão-Pará se revoltou contra o governo brasileiro após a independência e, entre 1835 e 1840, viu 40% de sua população, na maioria falantes de Nheengatu, exterminada (cf. GALINDO, 2022). Na sequência, uma grande migração de nordestinos falantes de português mexeu definitivamente no equilíbrio linguístico da região e o Nheengatu começou a minguar, mantendo um uso tímido em regiões urbanizadas como Belém. Após a revolta, relatos de viajantes do século XIX mostram que os seus focos de subsistência foram vilas que estavam em processo de urbanização como Manaus (em 1861 o Nheengatu era a língua majoritária) e as vilas da Comarca do Baixo Amazonas, que tinha como capital Santarém. Vide as falas do prof. José Ribamar Bessa Freire no documentário citado.
Florêncio Vaz, do povo Maytapú e da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), conta que desde a década de 1990, com a nova organização do movimento indígena brasileiro após a redemocratização, o Nheengatu passou a ser enxergado como ferramenta de resgate cultural pelos povos indígenas da região. Em seu artigo com Sâmela Ramos da Silva, citado acima, ficamos sabendo que o Grupo Consciência Indígena, criado em 1997 por militantes indígenas em Santarém, atuava, em conjunto com a UFOPA, na formação de professores de Nheengatu. Até então, pode-se dizer que a língua estava em estado “latente”, guardada na fala dos avós, e sobrevivia empoeirada numa região que dizia que sua própria população indígena estava extinta. Para combater a situação, o GCI começou a trazer para o baixo Rio Tapajós professores de Nheengatu do Rio Negro (AM), iniciando então um processo de resgate da língua na região. Até o final dos anos 90, não havia nenhum povo indígena reconhecido pela FUNAI por ali, mas, com uma virada no período, os povos da região começaram a reivindicar sua identidade. Pelo menos até 2019, o CITA (Conselho Indígena dos Rios Tapajós e Arapiuns) representava 12 povos nomeados (Arapium, Apiaká, Arara Vermelha, Borari, Jaraki, Maytapú, Munduruku, Munduruku Cara Preta, Kumaruara, Tapajó, Tupaiú e Tupinambá) que vivem em 70 aldeias nos municípios de Aveiro, Belterra e Santarém. A entidade também afirmava representar o povo Tapuia, constituído por pessoas de comunidades ribeirinhas e hoje habitantes de Santarém.
A partir desse período, o Nheengatu começou a assumir um novo papel na vida das comunidades indígenas do baixo rio Tapajós. Não se trata de uma língua engessada e envelhecida, mas profundamente viva, que busca encontrar novos lugares e papéis que lhe foram negados no passado.
A UFOPA, em 2021, tinha mais de 600 alunos indígenas, de 13 povos, dos quais 12 usam o Nheengatu (dados do documentário); oferece também, desde 2010, um vestibular indígena (Processo Seletivo Especial – PSE – Indígena) que destina vagas de seus cursos às comunidades indígenas locais e engaja as aldeias na entrada de cada aluno que ingressa na instituição para representar seu povo. Em 2017, ainda, foi aprovado o programa de Formação Básica Indígena na UFOPA (Resolução nº194, 24/04/2017, disponível nas referências) , um componente curricular de dois semestres que oferece aos ingressantes do PSE Indígena disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática, Metodologia Científica, Tecnologia, Conflitos Socioambientais na Amazônia, entre outras, a fim de garantir “uma adaptação mais confortável na universidade, bem como prepará-los para um melhor aproveitamento acadêmico, pois os/as estudantes indígenas, em sua grande maioria, encontram diversas dificuldades de adaptação”.
Os municípios de Santarém, Aveiro e Belterra já contam com escolas indígenas em suas redes de ensino, e o ensino de língua indígena é garantido na educação básica desde 2010; nas aldeias Munduruku do baixo Tapajós, o idioma Munduruku é ensinado. Em 2016 e 2017, buscando justamente a capacitação profissional dos professores necessários para tal, o curso de Nheengatu promovido pelo GCI em parceria com a Diretoria de Ações Afirmativas da UFOPA formou mais de 100 alunos (cf. VAZ FILHO, MEIRELLES, 2017). Mais recentemente, em 2024, a rede municipal de ensino de Santarém contava com 2838 alunos indígenas, distribuídos em 59 escolas indígenas na rede municipal e atendidos por mais de 100 professores que, entre outras matérias, ensinam os idiomas Nheengatu, Munduruku e Apiaká (segundo notícia do portal da prefeitura da cidade, citada nas referências).
A pesquisadora Sâmela Ramos, também participante do GEDAI, comenta no documentário citado que a revitalização de línguas indígenas, mais que um retorno ao passado, é um salto pensando os desafios do presente e do futuro. Precisamos que essas línguas sejam faladas em todos os contextos necessários e ganhem a vitalidade a que qualquer idioma tem direito. Os jovens que sairão da escola conhecendo línguas indígenas e ingressarão na universidade poderão produzir ciência nesses idiomas? As universidades brasileiras saberão acolher isso? Terão projeção e liberdade para produzir e disseminar música e literatura nesses idiomas? Fica o desafio.
Muitos avanços estão acontecendo. A Motorola já tem o Nheengatu como idioma de configuração nos seus aparelhos desde 2021, e o Nheengatu App, voltado para o ensino da língua, foi lançado no mesmo ano. O curso de Nheengatu do CGI e da UFOPA produziu um livro didático, o Nheengatu Tapajowara, para uso nas escolas da região, que está disponível digitalmente. Tem muita gente criando conteúdo e dando aulas pela internet também. Para o ensino de Tupi Antigo, temos Danilo Soares (@danilo.s68 no Instagram) e Mateus Oliveira (@tupinizando no Instagram); veja a descrição do perfil dos dois professores no Instagram para acessar o material produzido por eles e se inscrever em seus cursos; o Prof. Danilo também disponibiliza uma pasta no Google Drive com materiais interessantíssimos. O prof. Eduardo Navarro, da FFLCH-USP, também disponibilizou digitalmente um método de Nheengatu, e seu livro didático “Método Moderno de Tupi Antigo” pode ser comprado pela internet; no portal https://tupi.fflch.usp.br/ estão disponíveis algumas aulas dele.
Veja, as coisas acontecem. Que respiro!
E isso tudo pra falar quase exclusivamente de uma língua só. Para mais, veja o mapa de línguas indígenas do Pará produzido pelo GEDAI.
Bom, seguimos. Essa era uma resposta possível, um pouco mais longa, à pergunta lá de cima: Que língua vocês falam no Brasil? Se tiver tempo e disposição, talvez o amigo gringo queira saber disso tudo.
Veja aqui as referências usadas nesse texto
Obrigado!
Antes de finalizar, gostaríamos de te dizer que estamos muito felizes com esta edição. Ela marca um ano da Árvore. Foi um ano de projeto em que falamos sobre diversos assuntos que nos brilham os olhos. Por isso, queremos te agradecer por nos acompanhar nessa jornada. Esperamos que você tenha gostado dessa edição e que aproveite também os próximos textos, vídeos e edições que estão por vir!